MENSAGEM
DO PAPA FRANCISCO
«Não se
trata apenas de migrantes»
Queridos irmãos e irmãs!
A fé assegura-nos que o
Reino de Deus já está, misteriosamente, presente sobre a terra (cf. CONC. ECUM.
VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 39); contudo, mesmo em nossos dias, com
pesar temos de constatar que se lhe deparam obstáculos e forças contrárias.
Conflitos violentos, verdadeiras guerras não cessam de dilacerar a humanidade;
sucedem-se injustiças e discriminações; tribula-se para superar os
desequilíbrios económicos e sociais, de ordem local ou global. E quem sofre as
consequências de tudo isto são sobretudo os mais pobres e desfavorecidos.
As sociedades
economicamente mais avançadas tendem, no seu seio, para um acentuado
individualismo que, associado à mentalidade utilitarista e multiplicado pela
rede mediática, gera a «globalização da indiferença». Neste cenário, os
migrantes, os refugiados, os desalojados e as vítimas do tráfico de seres
humanos aparecem como os sujeitos emblemáticos da exclusão, porque, além dos
incómodos inerentes à sua condição, acabam muitas vezes alvo de juízos
negativos que os consideram como causa dos males sociais. A atitude para com
eles constitui a campainha de alarme que avisa do declínio moral em que se
incorre, se se continua a dar espaço à cultura do descarte. Com efeito, por
este caminho, cada indivíduo que não se enquadre com os cânones do bem-estar
físico, psíquico e social fica em risco de marginalização e exclusão.
Por isso, a presença dos
migrantes e refugiados – como a das pessoas vulneráveis em geral – constitui,
hoje, um convite a recuperar algumas dimensões essenciais da nossa existência
cristã e da nossa humanidade, que correm o risco de entorpecimento num teor de
vida rico de comodidades. Aqui está a razão por que «não se trata apenas de
migrantes», ou seja, quando nos interessamos por eles, interessamo-nos também
por nós, por todos; cuidando deles, todos crescemos; escutando-os, damos voz
também àquela parte de nós mesmos que talvez mantenhamos escondida por não ser
bem vista hoje.
«Tranquilizai-vos!
Sou Eu! Não temais!» (Mt 14, 27).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se também dos nossos medos.
As maldades e torpezas do
nosso tempo fazem aumentar «o nosso receio em relação aos “outros”, aos
desconhecidos, aos marginalizados, aos forasteiros (…). E isto nota-se
particularmente hoje, perante a chegada de migrantes e refugiados que batem à
nossa porta em busca de proteção, segurança e um futuro melhor. É verdade que o
receio é legítimo, inclusive porque falta a preparação para este encontro»
(Homilia, Sacrofano, 15 de fevereiro de 2019). O problema não está no facto de
ter dúvidas e receios. O problema surge quando estes condicionam de tal forma o
nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até
– sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da
capacidade de encontrar o outro, a pessoa diferente de mim; priva-me duma
ocasião de encontro com o Senhor (cf. Homilia na Missa do Dia Mundial do
Migrante e do Refugiado, 14 de janeiro de 2018).
«Se
amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os
publicanos?» (Mt 5, 46).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se da caridade.
Através das obras de
caridade, demonstramos a nossa fé (cf. Tg 2, 18). E a caridade mais excelsa é a
que se realiza em benefício de quem não é capaz de retribuir, nem talvez de
agradecer. «Em jogo está a fisionomia que queremos assumir como sociedade e o
valor de cada vida. (…) O progresso dos nossos povos (…) depende sobretudo da
capacidade de se deixar mover e comover por quem bate à porta e, com o seu olhar,
desabona e exautora todos os falsos ídolos que hipotecam e escravizam a vida;
ídolos que prometem uma felicidade ilusória e efémera, construída à margem da
realidade e do sofrimento dos outros» (Discurso na Cáritas diocesana de Rabat,
Marrocos, 30 de março de 2019).
«Mas
um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de
compaixão» (Lc 10, 33).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se da nossa humanidade.
O que impele aquele
samaritano – um estrangeiro, segundo os judeus – a deter-se é a compaixão, um
sentimento que não se pode explicar só a nível racional. A compaixão toca as
cordas mais sensíveis da nossa humanidade, provocando um impulso imperioso a
«fazer-nos próximo» de quem vemos em dificuldade. Como nos ensina o próprio
Jesus (cf. Mt 9, 35-36; 14, 13-14; 15, 32-37), ter compaixão significa
reconhecer o sofrimento do outro e passar, imediatamente, à ação para aliviar,
cuidar e salvar.
Ter compaixão significa
dar espaço à ternura, ao contrário do que tantas vezes nos pede a sociedade
atual, ou seja, que a reprimamos. «Abrir-se aos outros não empobrece, mas
enriquece, porque nos ajuda a ser mais humanos: a reconhecer-se parte ativa dum
todo maior e a interpretar a vida como um dom para os outros; a ter como alvo
não os próprios interesses, mas o bem da humanidade» (Discurso na Mesquita
«Heydar Aliyev» de Baku, Azerbeijão, 2 de outubro de 2016).
«Livrai-vos
de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu,
veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu»
(Mt 18, 10).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se de não excluir ninguém.
O mundo atual vai-se
tornando, dia após dia, mais elitista e cruel para com os excluídos. Os países
em vias de desenvolvimento continuam a ser depauperados dos seus melhores
recursos naturais e humanos em benefício de poucos mercados privilegiados. As
guerras abatem-se apenas sobre algumas regiões do mundo, enquanto as armas para
as fazer são produzidas e vendidas noutras regiões, que depois não querem
ocupar-se dos refugiados causados por tais conflitos. Quem sofre as
consequências são sempre os pequenos, os pobres, os mais vulneráveis, a quem se
impede de sentar-se à mesa deixando-lhe as «migalhas» do banquete (cf. Lc 16,
19-21). «A Igreja “em saída” (...) sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao
encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para
convidar os excluídos» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 24). O desenvolvimento
exclusivista torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Verdadeiro
desenvolvimento é aquele que procura incluir todos os homens e mulheres do
mundo, promovendo o seu crescimento integral, e se preocupa também com as
gerações futuras.
«Quem
quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo; e quem quiser ser o primeiro
entre vós, faça-se o servo de todos» (Mc 10, 43-44).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se de colocar os últimos em primeiro lugar.
Jesus Cristo pede-nos
para não cedermos à lógica do mundo, que justifica a prevaricação sobre os
outros para meu proveito pessoal ou do meu grupo: primeiro eu, e depois os
outros! Ao contrário, o verdadeiro lema do cristão é «primeiro os últimos». «Um
espírito individualista é terreno fértil para medrar aquele sentido de
indiferença para com o próximo, que leva a tratá-lo como mero objeto de
comércio, que impele a ignorar a humanidade dos outros e acaba por tornar as
pessoas medrosas e cínicas. Porventura não são estes os sentimentos que muitas
vezes nos assaltam à vista dos pobres, dos marginalizados, dos últimos da
sociedade? E são tantos os últimos na nossa sociedade! Dentre eles, penso
sobretudo nos migrantes, com o peso de dificuldades e tribulações que enfrentam
diariamente à procura – por vezes, desesperada – dum lugar onde viver em paz e
com dignidade» (Discurso ao Corpo Diplomático, 11 de janeiro de 2016). Na
lógica do Evangelho, os últimos vêm em primeiro lugar, e nós devemos
colocar-nos ao seu serviço.
«Eu
vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se da pessoa toda e de todas as pessoas.
Nesta afirmação de Jesus,
encontramos o cerne da sua missão: procurar que todos recebam o dom da vida em
plenitude, segundo a vontade do Pai. Em cada atividade política, em cada
programa, em cada ação pastoral, no centro devemos colocar sempre a pessoa com
as suas múltiplas dimensões, incluindo a espiritual. E isto vale para todas as
pessoas, entre as quais se deve reconhecer a igualdade fundamental. Por
conseguinte, «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento
económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os
homens e o homem todo» (SÃO PAULO VI, Enc. Populorum progressio, 14).
«Portanto,
já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e
membros da casa de Deus» (Ef 2, 19).
Não
se trata apenas de migrantes: trata-se de construir a cidade de Deus e do
homem.
Na nossa época, designada
também a era das migrações, muitas são as pessoas inocentes que caem vítimas da
«grande ilusão» dum desenvolvimento tecnológico e consumista sem limites (cf.
Enc. Laudato si’, 34). E, assim, partem em viagem para um «paraíso» que,
inexoravelmente, atraiçoa as suas expetativas. A sua presença, por vezes
incómoda, contribui para desmentir os mitos dum progresso reservado a poucos,
mas construído sobre a exploração de muitos. «Trata-se então de vermos, nós em
primeiro lugar, e de ajudarmos os outros a verem no migrante e no refugiado não
só um problema a enfrentar, mas um irmão e uma irmã a serem acolhidos,
respeitados e amados; trata-se duma oportunidade que a Providência nos oferece
de contribuir para a construção duma sociedade mais justa, duma democracia mais
completa, dum país mais inclusivo, dum mundo mais fraterno e duma comunidade
cristã mais aberta, de acordo com o Evangelho» (Mensagem para o Dia Mundial do
Migrante e do Refugiado de 2014).
Queridos irmãos e irmãs,
a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode-se resumir
em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Mas estes verbos não
valem apenas para os migrantes e os refugiados; exprimem a missão da Igreja a favor
de todos os habitantes das periferias existenciais, que devem ser acolhidos,
protegidos, promovidos e integrados. Se pusermos em prática estes verbos,
contribuímos para construir a cidade de Deus e do homem, promovemos o
desenvolvimento humano integral de todas as pessoas e ajudamos também a
comunidade mundial a ficar mais próxima de alcançar os objetivos de
desenvolvimento sustentável que se propôs e que, caso contrário, dificilmente
serão atingíveis.
Por conseguinte, não está
em jogo apenas a causa dos migrantes; não é só deles que se trata, mas de todos
nós, do presente e do futuro da família humana. Os migrantes, especialmente os
mais vulneráveis, ajudam-nos a ler os «sinais dos tempos».
Através deles, o Senhor
chama-nos a uma conversão, a libertar-nos dos exclusivismos, da indiferença e
da cultura do descarte. Através deles, o Senhor convida-nos a reapropriarmo-nos
da nossa vida cristã na sua totalidade e contribuir, cada qual segundo a
própria vocação, para a construção dum mundo cada vez mais condizente com o
projeto de Deus.
Estes são os meus votos
que acompanho com a oração, invocando, por intercessão da Virgem Maria, Nossa
Senhora da Estrada, abundantes bênçãos sobre todos os migrantes e refugiados do
mundo e sobre aqueles que se fazem seus companheiros de viagem.
Vaticano, 27 de maio de
2019.
[Francisco
PP]